Quando a pena de prisão era só masmorra e qualquer autoridade do momento podia prender até sem a existência de crime previsto em lei, os presos, nossos esquecidos de ontem e hoje, eram mais abandonados. As famílias, quando eles as tinham, é que dessem seu jeito de levar comida, remédio ou mesmo água ao seu familiar. Isso se ele, o preso, não estivesse sendo submetido a mais uma ordinária sessão de tortura. A prisão só servia como meio de prova ou para que se aguardasse a verdadeira e absoluta pena: a morte.
Foi em 1764 que Cesare Beccaria escreveu “Dos delitos e das penas”, do qual todos já ouviram falar, por sua importância não só para o Direito Penal, mas como para todo o ordenamento jurídico da atualidade. Beccaria defendeu o que veio a ser conhecido como princípio da legalidade: “Não há crime sem lei, nem pena sem prévia cominação legal”; algo que pode parecer lógico hoje em dia, mas que foi uma revolução no pensar da humanidade.
Outra pessoa importante desse século de pensadores revolucionários foi John Howard. Ele poderia ter sido um simples administrador, “sheriff” de sua cidade, Bedfordshire, se não tivesse, pela primeira vez, se preocupado com a situação dos presos sob sua responsabilidade. Isso foi em 1773. John dedicou, a partir dos 40 anos, a sua vida à causa carcerária. Reivindicou trabalho, assistência médica, uniforme para os presos, separação entre os sexos, por idade e por tipo de delito, ou seja, muitas coisas que até hoje não conseguimos implementar.
John lutou contra uma odiosa taxa que os presos tinham que pagar por estarem presos. Muitos, mesmo inocentados, não podiam sair da prisão enquanto não pagassem tal taxa. Ele viajou o mundo na propagação de seus ideais. E foi por ter contraído tifo, doença típica das prisões da época, que John morreu, em 1790. Não é à toa que ele é hoje considerado o Pai da Ciência Penitenciária.
Bem, não quero dar lições de história para os colegas dos Conselhos da Comunidade brasileiros, mas tão só homenageá-los com a citação desses personagens. Por dois motivos. O primeiro é que penso que sem pessoas, e não lei ou normas, não mudaremos nada. São vocês, membros dos Conselhos da Comunidade de todo o Brasil que fazem acontecer, que fazem existir algo de John Howard em nossa sociedade. Voluntários, guerreiros, incansáveis, corajosos e sonhadores, são todos vocês que me fazem acreditar em um dia melhor diante de tanta barbárie.
Esta semana que escrevo este texto para o nosso blog, vejo estampado nos jornais a notícia de que uma mulher, menor de idade, passou vinte dias presa em uma carceragem masculina de uma delegacia do Pará. E o pior é que a imprensa, políticos e todos mais dão ênfase ao fato de ser ela menor de idade, como se uma mulher, adulta que seja, pudesse ficar presa com homens na mesma cela. O absurdo não tem limites nem explicação. Onde está John Howard?
O segundo motivo pelo qual citei esses personagens é simbólico. Por conseqüência de terem vivido algo semelhante, tanto Beccaria, quanto John estão aqui citados: ambos tiveram o primeiro contato com a privação da liberdade porque foram presos. O primeiro teve uma experiência de prisão domiciliar, aristocrata que era, e o segundo foi preso por corsários franceses.
Embora muitos precisem ser presos ou ter um parente na prisão para começarem a ter o mínimo e preocupação com essas pessoas que são tão normais, mas tão normais que têm falhas e um dia erraram, hoje temos um caminho mais fácil para aproximar a sociedade dessas pessoas: os Conselhos da Comunidade. Órgão criado por lei para essa aproximação que não teria sentido de existir se não fosse o ser humano que ainda se comove diante da miséria alheia.
Trabalhando em um setor que teima em permanecer insensível ao problema carcerário, o judiciário, vejo que as esperanças renascem quando encontro pessoas fugindo do egoísmo e da mesquinharia comuns de nossa sociedade. Por isso que este texto vai em homenagem a todos membros dos Conselhos da Comunidade do Brasil, os quais ingressam nas “mansões da tristeza e da dor, medem o tamanho e as dimensões da miséria, da depressão e do desprezo, minimizam o esquecimento e assistem aos abandonados”, usando o texto que em 1781 Edmund Burker usou para homenagear John Howard.
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